terça-feira, 19 de maio de 2015

A Insustentável Leveza de Montecarlo

Por Carlos Frederico Pereira da Silva Gama




Numa F1 com mais países, mais corridas e mais dinheiro envolvido, os recordes caem facilmente diante de uma audiência globalizada de centenas de milhões que falam línguas diferentes.

Emerson Fittipaldi era o campeão mais jovem desde 1972, aí veio Fernando Alonso. E depois de Alonso, Sebastian Vettel. E hoje pilotos de 17 anos como Max Verstappen já marcaram pontos...

Alain Prost era o recordista de vitórias desde 1993, aí veio Michael Schumacher. Hoje temos três pilotos em condição de chegar perto de Schumacher em vitórias: Alonso, Vettel e Lewis Hamilton.

Ayrton Senna era o recordista de poles desde 1994. Aí veio Schumacher. Vettel e Hamilton têm condição de chegar a 69 poles position em suas ainda longas carreiras.

Prost tinha o recorde de voltas mais rápidas desde 1993. Aí veio Schumacher. E Kimi Raikkonen já igualou Prost. Com mais alguns anos, o finlandês pode superar o alemão.

Prost também tinha o recorde de pódios desde 1993. Aí veio Schumacher. Alonso, Vettel, Hamilton e Raikkonen ainda têm tempo de superar o alemão.

Riccardo Patrese tinha o recorde de GPs disputados desde 1993. Aí veio Rubens Barrichello. E hoje, entre outros, Jenson Button e Alonso podem quebrar essa marca.

Mas uma dúvida certamente permanece.

Será que alguém superará um dos recordes mais marcantes da história da F1?

As seis vitórias de Senna no Principado de Mônaco.
 

Monaco Grand Prix



O recorde de vitórias no Grande Prêmio de Mônaco – disputado desde 1929 – ficou durante 24 anos em mãos de Graham Hill, apelidado Mr. Mônaco. Em 1969 Hill venceu pela 5ª vez.

A primeira vitória de Senna foi em 1987. Com a belíssima Lotus-Honda, Senna venceu após a quebra do motor turbo de Nigel Mansell, da Williams-Honda, que era o melhor carro da época. O feito de Senna foi quase tão valorizado quanto um título, à época. A primeira vitória do Brasil em Montecarlo colocou Senna na liderança do Mundial, depois vencido por Nélson Piquet (Williams).
 

Senna debuta no Principado com Lotus-Honda turbo, 1987.



Senna comemorou em dobro sua primeira vitória, já que se considerava legítimo vencedor da edição de 1984. Com a frágil Toleman e num aguaceiro, Senna deixou para trás campeões mundiais como Niki Lauda. A prova foi interrompida quando Senna ultrapassava Prost. Valeu o resultado da volta anterior (a 31ª volta). Prost foi declarado vencedor. Começava uma rivalidade marcante.


Senna, o mais rápido na chuva com a Toleman-Hart turbo, 1984



No anos seguinte – despedida dos turbos na F1 – Senna estava ao volante de um carro invencível pela primeira vez na carreira. A McLaren-Honda turbo venceria 15 das 16 corridas do Mundial 1988 (8 de Senna, 7 de Prost). Em 15 delas largaria da pole-position (13 vezes Senna e apenas 2 Prost).

Uma das vitórias mais fáceis de Senna naquele ano teria sido em Montecarlo.

Senna fez a pole-position 1.427 à frente de Prost. 1 segundo e meio. Com o mesmo carro.

Quase 3 segundos atrás viria a primeira não-McLaren, a Ferrari de Gerhard Berger.

Montecarlo é única entre as pistas históricas da F1.

Nem um templo do automobilismo, como Monza. Nem um inferno como os 22 km de Nurburgring, desenhada pelas mãos de Adolf Hitler. Nem uma pista de testes da indústria automobilística, como Indianapolis. E também não era um aeroporto militar, como Silverstone.
 


Apesar do glamour da monarquia monegasca e dos iates de milionários e jet-setters internacionais enganarem os olhos, Montercarlo é algo mais prosaico: um conjunto de ruas.

Um estreito labirinto cortando o sinuoso litoral do Principado, entre cassinos, tabacarias e o famoso túnel onde Senna teria sentido a presença de Jesus Cristo (acelerando para além da imaginação).

Ruas são exigentes inclusive com carros invencíveis. A dificuldade do traçado nivela o equipamento. Sem espaço no mais das vezes para ultrapassagens, o controle do carro supera os cavalos no motor.

Montecarlo é daquelas pistas generosas com pilotos extraordinários, diante dos meramente bons.

Vale lembrar que Senna adorava pistas de rua. Como Detroit, onde venceu três vezes seguidas.

Em 1988 Senna fez sua especialidade: largou na pole e liderou as primeiras 66 voltas. Abriu mais de 1 minuto de vantagem para Prost. Em seguida, se distraiu e bateu no guard-rail. Fim de prova e vitória de Prost (sua 4ª por lá).

Senna prestes a pular o muro, sem a McLaren-Honda turbo, 1988


Seria a última frustração de Senna com as conquistas de Prost no Principado.

Em 1989 – já com motores aspirados – Senna novamente largou na pole.

E novamente colocou 1 segundo em Prost.

E dessa vez liderou todas as voltas e venceu com quase 1 minuto de dianteira.

O 2º lugar de Prost manteria o francês na ponta do Mundial, conquistado na batida de Suzuka.
 

Senna sem zebras, de McLaren-Honda aspirada, 1989


Em 1990, outro francês apareceria no caminho de Ayrton: o jovem Jean Alesi.

Com Prost numa forte Ferrari, Senna faria a pole com menos de meio segundo de vantagem.

Poucos milésimos atrás, em 3º, o prodígio Alesi, com uma frágil Tyrrell.

Prost aguentou 30 voltas atrás de Senna. Nas demais, Alesi ficou colado no brasileiro.

Chegou em 2º lugar pouco mais de 1 segundo atrás, performance memorável que lembrou 1984.

A vitória de Senna ajudaria na briga com Prost pelo título mundial, ganho numa batida...em Suzuka.

Alesi, Prost e Senna, de McLaren-Honda aspirada, 1990


Senna desfrutaria de seu último carro superior em 1991, quando venceu sem adversários as 4 primeiras corridas da temporada e o Mundial, por antecipação, em Suzuka (sem batida dessa vez).

A 4ª vitória foi exatamente o Grande Prêmio de Mônaco.

Senna fez mais uma pole. A surpresa foi a 2ª colocação da Tyrrell de Stefano Modena, apenas meio segundo atrás. A Tyrrell usava o motor Honda de Senna do ano anterior. O segundo melhor carro de 1991 (Williams-Renault) largaria apenas na 2ª fila com Patrese (6 décimos atrás) e 3ª fila (Mansell, 8 décimos atrás).

Modena ficou 42 voltas atrás de Senna até seu motor quebrar. Numa frágil Ferrari, Prost herdaria o 2º lugar mas o perderia para Mansell. Senna venceu com folga de 18 segundos.
 

Senna de boa voa no Principado, McLaren-Honda aspirada, 1991


Senna viveu seu ano mais difícil na F1 em 1992. Tinha um bom carro, a McLaren-Honda 4/7A com motor V12. Mas a Mclaren competia contra “um carro de outro mundo” – a obra-prima Williams-Renault FW14B, com todas as maravilhas tecnológicas conquistadas na era pós-turbo. Eram poucas as chances de vitória de Senna (ou de qualquer outro piloto) na primeira metade do ano. Na Williams, Mansell venceu as 5 primeiras corridas do ano largando da pole, com enormes vantagens.

Mansell largou na pole quase 1 segundo à frente do companheiro Patrese. E mais de 1 segundo à frente de Senna. Em Montecarlo. Isso era a prova do “carro de outro mundo” denunciado por Senna.

Nas 70 primeiras voltas Mansell abriu enorme vantagem e deu voltas em todos na pista, exceto Patrese e Senna. Sua melhor volta foi quase 2 segundos mais rápida que a melhor volta de Senna (e 2.5 segundos mais rápida que a melhor volta de Michael Schumacher no 3º melhor carro, Benetton).

Mas o Principado não perdoa distrações. Mansell tocou o guard-rail na volta 70 e danificou os pneus. Sua volta foi 30 segundos mais lenta que a de Senna, mais o tempo de parada nos boxes.

Mansell ficou uma volta preso com retardatários e perdeu mais 3 segundos. Mesmo assim, Senna tinha só 5 segundos de vantagem para o inglês, faltando 5 voltas. Mansell tirou 1 segundo na volta 73. E tirou 3 segundos na volta 74, quebrando o recorde da pista.

As ruas de Montercalo transformadas em circuito têm 3328 metros de extensão.

Nas 3 voltas finais: faltou pista para Mansell. Ou sobrou Senna na pista?

Torcemos loucamente pela vitória de Ayrton. Em Montecarlo tudo é possível.

A 5ª vez a gente nunca esquece. Senna iguala Graham Hill, McLaren-Honda aspirada, 1992.


A torcida era necessária. A vantagem do “carro de outro mundo” continuou em 1993.

E dessa vez, no lugar de Mansell, estava Prost. Em busca de seu quarto título.

E Senna dessa vez tinha se oferecido para correr de graça na Williams. E teve o dissabor de ser vetado pelo contrato de Prost – que tinha uma cláusula, digamos, anti-Senna.

Depois de ensaiar uma fuga para a Fórmula Indy, Senna assinou um contrato corrida a corrida com a McLaren, que já não teria mais os motores Honda e teria que se virar com uma versão inferior dos motores Ford da Benetton. A cada corrida Senna embolsou 1 milhão de dólares.

Era o preço a se pagar diante da vantagem da Williams.

Nos treinos de Mônaco a diferença se tornou constrangedora. Prost fez a pole 1 segundo à frente.

Entre Prost e Senna (dois erros nos treinos, duas batidas), o veloz Schumacher, pouco mais de meio segundo atrás. Schumacher ficou à frente de Senna no Mundial 1992. Era a nova estrela da F1.

Prost queimou a largada. Depois de 11 voltas liderando sem forçar, Prost fez uma parada desastrosa nos boxes para cumprir punição. Seu motor apagou. Prost voltou 1 volta atrás de Schumacher.

O alemão liderou também sem problemas 21 voltas. Até sua suspensão quebrar.

E Senna liderou as demais voltas sem ser incomodado pela outra Williams invencível, de Damon Hill.
Venceu com quase 1 minuto de vantagem. Uma vitória quase por acaso? E 1984?

Pela 6ª vez. Mr. Mônaco.

E líder – quase impossível – do Mundial de 1993, eventualmente vencido por Prost.

Prost queima. Schumacher quebra. Senna se torna Mr. Mônaco. McLaren-Ford aspirada, 1993.


Senna não teria a chance de uma sétima vitória, enfim na invencível Williams.

Morreria em 1994, em Imola, um GP antes de Montecarlo, juntamente com Roland Ratzemberger.

Na primeira pole da carreira de Schumacher, a 1ª fila do grid estava vazia.
 

A ausência de Ayrton Senna em Montecarlo, 1994.


O vazio sulcado nas ruas do Principado nunca foi preenchido (mesmo com 5 vitórias, Schumacher).

Mas uma coisa não mudou. Vitórias improváveis (como Olivier Panis, 1996) são possíveis por aqui.

Uma vez por ano, vemos a família real de Mônaco no pódio.

E nas ruas, todo dia, caímos na real. Recomeça o grande prêmio da vida.

Montecarlo é a síntese das contradições da F1. A democracia do asfalto e a aristocracia do pódio.

O mesmo braço que segura o volante durante 2 horas ergue o champagne por alguns segundos.

A insustentável leveza da vida.


(Carlos Frederico Pereira da Silva Gama é professor de Relações Internacionais da UFT e assiste o Grande Prêmio de Mônaco desde a Era de Ouro da F1)


 

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